Sobre

Sobre o projeto Multilinguagens 



O Multilinguagens é um projeto de ensino interdisciplinar e desseriado (grupos com alunos de 2º e 3º anos – Multinho – e grupos com alunos de 4º e 5º anos – Multi) desenvolvido nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do CAp/UFRGS pelos professores de Artes Visuais, Espanhol, Inglês, Música e Teatro.

O projeto surgiu porque os professores da equipe Unialfas perceberam a dificuldade dos alunos participarem efetivamente de diferentes temas trazidos por cada professor em suas áreas específicas (o tema trabalhado nesta proposta é comum também à Polivalência, sendo escolhido em reunião de equipe de trabalho a partir das sugestões dos alunos).

Notou-se ainda que havia pouco tempo para aprendizagem e para aprofundamento de cada um desses assuntos quando trabalhados em cada área individualmente. O Projeto Multilinguagens, em parceria com a Polivalência, parte de textos âncoras (música, filme, peça de teatro, conto, etc.) por semestre, o qual é a atividade disparadora da curiosidade, o propulsor dos questionamentos dos alunos e dos professores, e direciona os conteúdos desenvolvidos pelas especificidades de cada área.

As aulas ocorrem de forma cíclica, a fim de que possam, ao final de cada uma das manhãs, ter vivenciado de três a quatro diferentes linguagens.


Com esta proposta buscamos: 

  • Ampliar as possibilidades de agir discursivamente no mundo.
  • Compreender as diferentes linguagens como meio de integrar-se ao mundo e exercitar a cidadania. 
  • Apoiar o letramento dos alunos dos Anos Iniciais.
  • Articular os saberes dos diferentes componentes curriculares do projeto através de uma temática comum, em parceria com as demais áreas oferecidas aos alunos.
  • Buscar o protagonismo das crianças em cada aula.
  • Contribuir para ver-se e constituir-se como sujeito a partir do contato e da exposição ao outro, das diferenças e do reconhecimento e respeito à diversidade.
  • Desfragmentar a organização dos horários das turmas.
  • Estabelecer de relações entre texto e contexto.
  • Entrar em contato com o patrimônio artístico, exercitando sua cidadania cultural, para que adquiram competências de sensibilidade e de cognição nas diferentes linguagens artísticas. 
  • Propor atividades pedagógicas embasadas nas experiências e no tempo de amadurecimento das temáticas trabalhadas. 
  • Proporcionar diferentes situações de ensino, oportunizando também o fortalecimento da língua portuguesa.
  • Valorizar o trabalho coletivo e colaborativo dos alunos com idades e experiências distintas (desseriação). 

                    Pressupostos teóricos que norteiam o Projeto 

                    Schlatter e Garcez (2001, p.4) apontam que uma das críticas atuais mais contundentes em relação ao ensino é sua dissociação da realidade social da comunidade e seu conceito subjacente de linguagem, meramente estrutural e estritamente funcional. Nesse sentido, Kleiman aponta que
                    O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes. (1995, p.20) 
                    Sob essa perspectiva, entendemos que desenvolver somente o conhecimento sistêmico das diferentes linguagens não colabora para uma atuação do indivíduo com mais autonomia e criticidade nas diferentes esferas sociais em que transita. É preciso, portanto, que o trabalho com esses diferentes componentes curriculares envolva a interação com diferentes textos que partam das práticas sociais dos alunos e de suas comunidades. Não é possível construir significados nas aulas a partir do trabalho descontextualizado com o conhecimento sistêmico. Isso não quer dizer que ele não deva fazer parte do nosso plano de ensino, mas ele não pode ser nosso único objetivo nem pode ser desenvolvido aparte dos sentidos construídos nas práticas sociais.

                    Na orientação apontada por Britto (2003, p.16), segundo a qual o educando tem “de aprender o mundo e, neste aprendizado, aprender a escrita”, a proposta de ensino que permeia as diferentes linguagens não está restrita às habilidades “mecânicas” de ler e escrever; ela visa a proporcionar aos alunos oportunidades para fazer uso de diferentes materiais escritos, orais e imagéticos, para que eles consigam compreendê-los, interpretá-los, compreender informações desses textos que sejam relevantes para suas realidades, fazer relações com seus contextos sociais; de modo que a leitura e a escrita sejam usadas para uma prática social. Contudo, para desenvolver esse tipo de trabalho, é de fundamental importância não se esquecer de ancorá-lo no conhecimento que o educando traz de suas vivências anteriores:
                    Um dos procedimentos básicos de qualquer processo de  aprendizagem é o relacionamento que o aluno faz do que quer aprender com aquilo que já sabe. Isso requer dizer que um dos procedimentos centrais de construir conhecimento é baseado no conhecimento que o aluno já tem: a projeção dos conhecimentos que já possui no conhecimento novo, na tentativa de se aproximar do que vai aprender. (BRASIL, 1998, p.32)
                    A respeito da discussão sobre os objetivos e o papel da escola, Schlatter (2009, p.14) acrescenta que a escola deve criar oportunidades tanto de leitura quanto de escrita que tratem de diferentes gêneros do discurso; tenham graus diferentes de planejamento e formalidade, ou seja, envolvam diferentes interlocutores; apresentem sequências discursivas variadas e propósitos diversos, como argumentar, reclamar, informar, etc. Não se pode esquecer que as situações de comunicação (quem fala, para quem, em que contexto, com que objetivo, etc.) são diferentes para cada uso de linguagem, portanto as tarefas propostas na escola devem visar o reconhecimento dessas situações e focalizar atividades de compreensão e reação ao texto que sejam coerentes com o gênero a ser trabalhado.

                    No entanto, para podermos desenvolver um trabalho sob essa perspectiva, precisamos compreender o que significa aprender. De acordo com os Referenciais Curriculares (RC), “aprender [...] na escola é poder participar de atividades que façam sentido para os educandos desde o princípio” (RGS, 2009, p.131). A partir desse ponto de vista, entendemos que o ensino dos diversos componentes curriculares “serve, mais amplamente, ao letramento, isto é, objetiva promover a participação em diferentes práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita” (RGS, 2009, p.134).

                    Desse modo, compreendemos que essa proposta de ensino pode criar oportunidades para que os alunos ampliem seus espaços de participação no aqui e agora, tanto na sala de aula quanto na vida cotidiana. Espera-se que os alunos possam compreender melhor o que se passa com eles, em sua comunidade, estado, país, porque trataram dessas questões nas aulas através de discussões sobre textos que são relevantes para suas vidas.

                    De acordo com os RC (RGS, 2009, p.48) – que defendem que “o sucesso do ensino e da aprendizagem está vinculado à coerência entre a abordagem de ensino, o planejamento das atividades, a escolha e/ou elaboração de materiais didáticos e a avaliação” –, se nosso objetivo de ensino é promover o letramento e, assim, oportunizar que os alunos participem em diferentes contextos de uso das linguagens, precisamos pensar nossa avaliação a partir desse mesmo critério.

                    Segundo Luckesi (1996, p.28), “a avaliação não se dá nem se dará num vazio conceitual, mas sim dimensionada por um modelo teórico de mundo e de educação, traduzido em prática pedagógica”. Dessa forma, na perspectiva do letramento, vê-se avaliação como uma prática mais voltada para o processo, contrária a uma concepção mais tradicional, exclusivamente focalizada no produto e sem implicações nas práticas de ensino ou de aprendizagem.

                    Neste contexto, torna-se fundamental que o aluno perceba o que aprende, identifique as suas dificuldades e seja capaz de buscar novas aprendizagens. O professor deve ser capaz de questionar as suas práticas e analisar os resultados obtidos, através de uma atitude supervisora, bem como envolver o aluno na sua aprendizagem, transformando-o em coautor de todo o processo, favorecendo o desenvolvimento da sua autonomia. Ao problematizar a prática através da reflexão, o professor tenta encontrar soluções para os problemas com que se depara. Isto implica que ele tenha de ser continuamente supervisor dessa prática e a reveja de forma sistemática. A avaliação é também um instrumento que demonstra o comprometimento do professor com o processo de ensino e aprendizagem. Deve ser utilizada para diagnosticar o que está acontecendo, como este processo está se desenvolvendo, para ver se são necessárias mudanças no modo como o trabalho vem sendo construído em sala de aula. Nesse sentido, “avaliar um educando implica, antes de mais nada, acolhê-lo no seu ser e no seu modo de ser, como está, para, a partir daí, decidir o que fazer” (LUCKESI, 2000, p.7).

                    De acordo com os RC (RGS, 2009, p.12), “a referência da avaliação é o currículo e não vice-versa. Não faz sentido, portanto, afirmar que se ensina tendo em vista a avaliação, quando o sentido é exatamente o oposto: se avalia tendo em vista as aprendizagens esperadas estabelecidas no currículo”. O documento ainda afirma que “não basta a prática de sala de aula adotar a pedagogia de projetos, [...] é preciso que a avaliação da aprendizagem seja coerente com essa prática” (p.165) e que “a avaliação sinaliza ao aluno, ao professor e à comunidade o que está sendo valorizado, o que está sendo alcançado e o que é preciso melhorar” (p.49).

                    Assim, segundo Luckesi (1996, p.33), pode-se entender que “a avaliação é um julgamento de valor sobre manifestações relevantes da realidade, tendo em vista uma tomada de decisão”. Essa decisão deve ser tomada para ajudar os alunos a melhorar no processo de aprendizagem e não para julgá-los ou classificá-los, visto que uma avaliação classificatória não auxilia em nada o avanço e o crescimento e vê o conhecimento apenas de uma dimensão individual, ignorando que ele é, na verdade, um produto socialmente construído, como constata Britto:
                    Na sociedade industrial, é evidente a sobrevalorização da dimensão individual. Esta sobrevalorização, que também se manifesta nas propostas de avaliação, está quase sempre centrada na verificação das competências singulares e na produção de escalas de capacidade auferida por testes individuais. Desconsidera-se, assim, o fato de que o conhecimento é um produto social e que aquilo que uma pessoa sabe e efetivamente faz se circunscreve nas condições históricas objetivas em que ela se encontra. O que uma pessoa sabe e faz isoladamente é muito distinto do que ela sabe e faz em grupo ou em tarefas solicitadas em situações sociais reais. Há uma variada gama de situações mediadas pela escrita que se realizam com base em relações sociais, culturais e políticas que são, em sua historicidade, estabelecidas independentemente das capacidades dos sujeitos tomados individualmente. (BRITTO, 2003, p.12)

                    Nesse sentido, Britto (2003, p.13-14) salienta que o conceito de letramento não pode ficar limitado à área dos estudos das linguagens, pois ele é, acima de tudo, “uma nova compreensão da própria noção de educação e de construção e de circulação do conhecimento na sociedade industrial de massa”. Logo, para que possa contribuir para a reflexão e a prática educativa, esse conceito precisa relacionar-se com outras áreas do saber, considerando questões relativas à produção e à circulação do conhecimento (escolar e não escolar) e não deve ser um substituto do conceito de alfabetização.

                    Desse modo, no trabalho desenvolvido pelo projeto Multilinguagens, entendemos, em consonância com Barbosa (2004), que o mais importante não é conseguir dar toda a matéria, mas proporcionar que os alunos construam os significados que estão disponíveis na temática em questão. O conhecimento, por não ser linear, existe sob a forma de rede com múltiplas relações e inter-relações que buscam ser discutidas ao trabalharmos as especificidades de nossos componentes curriculares a partir do mesmo tema. Para que haja construção de conhecimento, precisamos entender que
                    a aprendizagem acontece em situações concretas, de interação como um processo contínuo e dinâmico em que se afirma, se constrói e desconstrói, se faz na incerteza, com flexibilidade, aceitando novas dúvidas, comportando a curiosidade, a criatividade que pertuba, que levanta conflitos. (BARBOSA, 2004, p.10-11)
                    Percebemos, portanto, a interdisciplinaridade, conforme Schlatter e Garcez (2012), como uma “estrutura de aprendizagem”, que visa a aproximar o aluno da escola e a escola dos alunos, dinamizando o ensino e promovendo múltiplos deslocamentos de perspectiva fundamentais para a geração efetiva de conhecimento. Segundo Fazenda, “a interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas no interior de um mesmo projeto” (1996, p.51). Ainda segundo a autora, a interdisciplinaridade é uma questão de atitude, visto que “a colaboração entre diversas disciplinas conduz a uma interação, a uma intersubjetividade como única possibilidade de efetivação de um trabalho interdisciplinar” (FAZENDA, 1996, p.70).

                    Referências


                    BARBOSA, M.C.S. Por que voltamos a falar e a trabalhar com a Pedagogia de Projetos? In: Projeto – Revista de Educação: projetos de trabalho. Porto Alegre, 3(4), 2004.

                    BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 1998.

                    BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta Curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental. 5a a 8a série : introdução / Secretaria de Educação Fundamental, 2002.

                    BRITTO, L.P.L. Educação e política – sobre o conceito de letramento. In: ______. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas: Mercado de Letras, 2003.

                    FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Integração e interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: efetividade ou ideologia. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996(1979).

                    KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: ______. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

                    LUCKESI, C.C. A avaliação educacional escolar: para além do autoritarismo. In: ______. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez, 1996.

                    ______.  O que é mesmo o ato de avaliar a aprendizagem? Pátio. Porto Alegre, n.12, fev./abr. 2000.

                    MORAES, S. E. e KLEIMAN, A. Leitura e Práticas Disciplinares. In: ______. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola. São Paulo: Mercado de Letras, 1999.

                    RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Educação, Departamento Pedagógico. Referenciais curriculares do Estado do Rio Grande do Sul: linguagens, códigos e suas tecnologias. Porto Alegre: SE/DP, 2009.

                    SCHLATTER, M. O ensino de leitura em língua estrangeira na escola: uma proposta de letramento. Revista Calidoscópio, 7(1):11-23, 2009.

                    SCHLATTER, M.; GARCEZ, P.M. Treinamento ou educação no ensino de língua: escolha metodológica ou política. In: VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada - A linguagem como prática social, 2002, Belo Horizonte. Anais do VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada - A linguagem como prática social, 2001.

                    SCHLATTER, M.; GARCEZ, P.M.  Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. 1. ed. Erechim: Edelbra, 2012.

                     
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